Estudo realizado na epístola de 1 Pedro 1.3-5
3. Bendito o Deus e Pai… O agradecimento e a intercessão que, em cartas antigas, geralmente tem nessa altura o seu lugar, é formulado aqui no estilo das bendições judaicas. Como é usual no Antigo Testamento, aqui ela se encontra na terceira pessoa. Estas bendições são elementos característicos das orações judaicas, conforme podemos ver, por exemplo, nas Dezoito Bênçãos (que eram recitadas três vezes ao dia nos ofícios das sinagogas e pelos judeus piedosos). Cada uma delas terminava com uma bendição, formulada na 2- pessoa: “Bendito és tu, ó Senhor…” Este espírito de constante agradecimento e louvor a Deus marca de forma muito profunda a autêntica piedade judaica, certamente um dos elementos formadores da personalidade de Jesus enquanto pessoa humana (conforme também o podemos vislumbrar nos apóstolos). A mesma fórmula usada aqui em 1 Pedro encontra-se em Ef 1.3 e 2 Co 1.3, mostrando que era de uso comum entre os primeiros cristãos.
E se passarmos das coincidências formais para a identidade essencial, veremos que temos aqui uma das heranças judaicas que marcam o cristianismo primitivo. Mas alguma coisa mudou. Aparentemente, aqui Deus está um pouco mais próximo, parece ser conhecido de forma mais íntima pela pessoa que louva e bendiz. Isto certamente se deve ao evento fundamental da encarnação que se coloca entre o cristianismo e o judaísmo. Deus agora não é mais só “o Senhor, Deus de Israel”. É o Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo. O Deus que opera prodígios (SI 72.18) é reconhecido agora pelo maior prodígio já efetuado na história humana: a ressurreição de Jesus Cristo, revelando através dela, e pelas implicações que dela advêm, a Sua muita misericórdia para com o homem. Misericórdia (gr. eleos) acentua aqui que o próprio Deus é o grande protagonista desta história.
E, em se tratando do Deus revelado de forma mais plena na Sua graça em Cristo, só podíamos esperar abundância (cf. o poli grego; BJ e IBB: “grande misericórdia”). A operação da graça manifestada de forma sem par na ressurreição de Jesus resulta em algo concreto na vida dos eleitos: um novo nascimento. Este, por um lado, é resultado da efetivação dessa salvação (considerando-se como consequência dela). Por outro lado, é a própria concretização da salvação (como sua evidência presente). Ainda por outro lado, ele é tão somente o primeiro passo (em termos da experiência da pessoa) para se chegar a alcançar tal salvação que, em última análise, se encontra ainda no futuro (o que é indicado aqui pelo termo esperança): Assim, o novo nascimento é decorrência da ressurreição de Jesus Cristo é possível porque esta foi possível; é o mesmo poder que atua em ambos. Derivar o conceito neotestamentário do novo nascimento das antigas religiões de mistério, como tem sido postulado com m alguma frequência, não parece tão provável assim.
A semelhança de terminologia não representa automaticamente uma compreensão nos mesmos moldes. Além do mais, a ideia não é realmente tão frequente nas religiões místicas, como já se chegou a acreditar. O mais provável mesmo é que uma ideia comum no judaísmo (especialmente no que diz respeito ao batismo de prosélitos, mas também com relação à esperança geral da ressurreição) recebeu um conteúdo bem específico a partir da experiência cristã, expressando-se, por sua vez, nos termos do mundo judaico e helenístico ao redor. Deus, então, é louvado pela regeneração que operou tanto no autor como nos leitores (cf. o nos). Uma série de preposições gregas explicita alguns aspectos importantes deste evento. Primeiramente, ele está de acordo com o conhecido caráter de Deus (isso é expresso pelo uso de kata, “segundo”, “de conformidade com”).
O elemento específico do caráter de Deus aqui mencionado é a sua misericórdia. Em segundo lugar, nos é dito, sobre o novo nascimento, que ele visa criar nos leitores uma viva esperança (cf. a preposição “para” [gr. eis), que define propósito). Em terceiro lugar, o meio que Deus usou para isso (a preposição é dia, “mediante”) foi a ressurreição de Jesus. O novo nascimento, assim, tem a virtude de criar naqueles que o experimentam uma viva esperança Goppelt entende esperança aqui como elemento objetivo, equivalente a “aquilo que é esperado” (ou seja, o objeto da esperança); no caso, a herança descrita no v. 4. Não se pode, de fato, negar essa possibilidade, mas o adjetivo especificador viva (gr. zõsan) nos levaria a pelo menos incluir a experiência subjetiva de uma vida que tem novas perspectivas de futuro abertas à sua frente. Viva esperança, num sentido bíblico, é uma esperança sempre renovada, pela confiança no poder e na confiabilidade daquele que a motivou (um sentido conforme a Rm 5.5, ecoando Is 49.23).
4. O propósito ou alvo final do novo nascimento é outra vez definido, desta feita em termos de uma herança (gr. kleronomia). Aparentemente, então, “esperança” e “herança” são entendidos aqui como sinônimos, ou pelo menos como grandezas de conteúdo equivalente. A herança é caracterizada pelo uso de uma série de três adjetivos gregos, todos marcados pelo prefixo diferenciador a- (a-ftarton, a-mianton, a-ma- rantori)’, traduzidos em ARA por “incorruptível, sem mácula, imarcescível”). O propósito, sem dúvida, é ressaltar a singularidade e a incomparabilidade da herança. Assim, a esperança mencionada recebe um conteúdo que é descrito aqui em termos que lembram a ancestral promessa de Deus ao povo eleito do Antigo Testamento: a promessa da terra. Kleronomia tomou- se, neste sentido, um termo quase técnico entre os judeus (sendo que a palavra grega foi divulgada com esse sentido específico pelo constante uso na Septuaginta.)
Já na Bíblia grega, porém, a palavra começa a ganhar também um sentido mais amplo de “salvação”, o que J. Eichler chama de “tendência escatológica” já presente no AT. Com isso, ela vai perdendo aquele marco de espacialidade contido na promessa da terra de Canaã. No NT, posteriormente, é essa tendência escatológica que se impõe, no uso do termo. Aqui em 1 Pedro, sem dúvida, ele é usado com um sentido que chegou a quase ser técnico, representando a salvação escatológica, com tudo que ela implica. Esta herança não é definida como uma espécie de utopia futura, mas como tendo já sua existência (embora, por enquanto, esta se limite aos céus). Isso nos dá uma chave, mostrando que o autor está trabalhando com categorias espirituais. Reservada, (gr. tetêrèmeriên‘, ARC, “guardada”) no tempo perfeito, talvez encerre a ideia de “estar sob custódia”, até o dia de ser revelada (do que se fala no v. 5).
Para vós outros, num contexto como este, serve para ressaltar a dignidade e a importância dos leitores, o que se encaixa bem ao tom de incentivo e encorajamento que perpassa toda a carta. A herança é definida, então, pelo uso de três adJetivos com a- privativo, como já vimos. Como a herança é celeste, pertencente ao novo éon, fica difícil defini-la. O que o “escaton” [a glorificação do fim dos tempos] traz, na verdade, só pode ser definido aqui de dentro do mundo via negationis (Goppelt), ou seja, dizendo o que ela não é, em comparação com toda outra herança que se possa receber aqui no mundo. Para guardar a correspondência com o estilo grego (um adorno literário que tem muitos paralelos no uso da época), a melhor tradução em português é a que mantém um prefixo privativo como “in” (cf. IBB: “incorruptível, incontaminável e imarcescível”, ou ainda BJ, que no segundo termo tem “imaculável”).
Aftharton, incorruptível, tem o sentido básico de “algo que não perece, não apodrece, não se deteriora”, em contraposição ao que é fthartos, “corruptível” (cf. Ef 4.22, onde se fala do homem natural “se corrompendo”, ou seja, degenerando até final mente morrer). Amianton, sem mácula, é algo absolutamente limpo, sem qualquer tipo de sujeira ou de contaminação que possa levar a uma posterior degeneração (um ideal que é bem descrito em Ap 21.4, que fala do mundo escatológico que, graças à presença do próprio Deus entre os homens (v. 3) não conhece qualquer tipo de imperfeição, no sentido da fragilidade humana e deste mundo presente). Amaranton é traduzido ARA por imarcescível (termo pouco usado hoje em português; talvez uma tradução mais comunicativa seria “inalterável”, sentido inclusive sugerido pelo Novo Dicionário Aurélio); é praticamente sinônimo de aftharton.
E uma palavra mais aplicada a coisas da natureza, representando na poesia “uma flor que nunca murcha nem perde a sua beleza”. Selwyn tenta distinguir os três termos, aplicando-os, respectivamente, à vida como tal, à pureza ética e religiosa, e à natureza. Sem dúvida, o Reino esperado relaciona as bênçãos e a perfeição da nova era a todas estas dimensões. Finalmente, devemos mencionar a relação entre o conceito de herança, do v. 4 e o do novo nascimento, do v. 3. O crente renasce para dentro de uma nova “família” (Ef 2.19), passando a estar para com Deus numa relação de filho (cf. Jo 1.12) e para com Jesus, de “irmão” (Rm 8.29).
Grande é este mistério (como diria Paulo), mas o certo é que, diante de Deus, esta espécie de “novo estado civil” passa a ser legal, podendo-se compreender, a partir daí, o pensamento da herança (conforme a lógica de Rm 8.17: sendo filhos, logo somos herdeiros de Deus, co- herdeiros com Cristo). O vínculo legal que aqui se tem em vista passa pelo processo a que chamamos de “adoção” (e que a teologia posterior mente elaborou). De uma ou outra forma, alguma coisa como essa está no fundo da discussão acerca de uma herança reservada aos crentes (se bem que a linguagem figurada não se sujeita a imposições assim tão lógicas).
5. Até o dia de entrarem na posse dessa herança, talvez muita água tenha de rolar na vida dos eleitos. Sua condição de forasteiros, e com isso “estranhos” a muitas das coisas que perfazem a vida neste mundo, certamente lhes criará ainda mais dificuldades no “viver o tempo que lhes resta na carne” (4.2). Face a isso, porém, contam com a constante presença de Deus ao seu lado, sendo guardados pelo seu poder. Frurumenus (guardados) é praticamente um sinônimo de tetêrêmeriên (“reservada”), no v. 4 (ARC traduz ambas as palavras por “guardado”). Nesse jogo de palavras, como nota Goppelt, o autor quer mostrar que o poder e a proteção de Deus atuam tanto no sentido de preservar a salvação para os crentes como de preservá-los, para a salvação.
O poder de Deus é uma expressão que entreabre um pouco as cortinas da esfera espiritual que, na cosmovisão bíblica, cerca e perpassa este mundo material em que vivemos, revelando a presença constante (ainda que muitas vezes despercebida) do Criador e Senhor do mundo, intervindo concretamente na história (elemento aqui indicado pelos dois fatos, primeiro e último na sequência de 1.3-5: a ressurreição e a Sua nova intervenção direta no fim dos tempos). Entre a ressurreição de Cristo e a Sua manifestação final no último tempo, o crente pode ter certeza do acompanhamento constante de Deus, mesmo que, às vezes, se tome difícil percebê-la concretamente.
Este poder, contudo, não é autoritário e ditador, como muitas vezes o é o poder exercido por homens. Ele espera, da parte das pessoas, o exercício da fé. Pela referência à fé, tão próxima à referência ao poder de Deus, temos aqui expresso novamente aquele aparente paradoxo da vida cristã no mundo. Parece que, efetivamente, tanto Deus como o homem têm a sua parcela de iniciativa no processo. É certo que a iniciativa primeira procede de Deus, mas, aparentemente, ela pode vir a ser desefetivada sem o concurso da resposta do homem.
Pela terceira vez, dentro dos yv. 3-5, aparece uma oração com eis (para). De novo se faia do futuro que os crentes têm aberto diante de si, já antes indicado pelos termos esperança (v. 3) e herança (v. 4). Aqui, fala-se em salvação. Muito provavelmente o que está em vista são grandezas de mesmo conteúdo, ou pelo menos de idêntico ponto de referência. Talvez possamos falar de uma espécie de abertura gradual no com passo dos conceitos, sendo então salvarção o mais abrangente e completo dos três. No entanto, cada um tem os seus matizes próprios, dando assim uma coloração bastante intensa, quase poética, àquilo que é o objeto da fé dos leitores (aquilo que recebem pela fé). Sõtêria (salvação) é um conceito bastante amplo e dinâmico, e fundamental para uma compreensão correta do NT.47
Em 1 Pedro, aparentemente, o termo é usado visando de forma particular a salvação no fim dos tempos, ou seja, algo que na experiência ainda permanece como futuro. Seria, então, o que num contexto de teologia cristã chamaríamos de “salvação plena” (uma vez que em outros escritos bíblicos vemos a salvação já entendida como experiência presente). Também o autor da nossa carta dá evidências de que entende assim a experiência cristã, preferindo, no entanto, usar outros termos para descrever a experiência presente da salvação (embora em 3.21 um verbo da mesma raiz da palavra aqui usada apareça no tempo presente). Esta salvação, já preparada (“nos céus”, cf. o v. 4) aguarda o momento próprio para, finalmente, vir a ser revelada. É difícil dizer se a palavra hetoimos (preparada) aqui traz no seu bojo uma conotação de iminência (como aparentemente a entendem BJ e ARC: “prestes a revelar-se”).
Certamente a expectativa escatológica daqueles dias era intensa, não se prevendo muita demora para a consumação final. A isso correspondem outras declarações dentro da nossa carta (como 4.2: “o tempo que vos resta”, 4.7: “o fim de todas as cousas está próximo”; 4.17: “a ocasião de começar o juízo é chegada”). A salvação, então, está pronta para revelar-se (gr. apokaliftfiênai, um aoristo passivo que, por assim dizer, remove qualquer possibilidade de que algo no mundo interfira nisso; o passivo esconde a intervenção direta de Deus). O conceito de revelação é importante neste trecho da carta, onde ele aparece três vezes (nos vv. 5, 7,12). A ideia básica é de alguma coisa que já existe e que, em dado momento, é mostrado a uma pessoa ou grupo, que podia ou não ter consciência anterior da sua existência (a palavra grega origina-se do movimento de tirar um véu de cima de alguma coisa, expondo-a).
Tal revelação dar-se-á no último tempo. Tempo aqui é Kairos, palavra grega que aos poucos vai se incorporando ao uso corrente no português. Denota uma estimativa de tempo que não é determinada cronologicamente, sendo antes um tempo “certo” para que alguma coisa, que devia acontecer, aconteça. No último tempo (gr. en kairo eschato) é uma expressão quase fixa na cristandade primitiva, denotando aqui não o “tempo do fim”, no sentido neotestamentário de todo o período que vai da primeira até a segunda vinda de Cristo (e que já começou), mas especificamente o período final dessa época, o “fim do fim”.
Fonte Consultada:
Série Cultura Bíblica – 1 Pedro – Introdução e Comentário
Ênio R. Mueller
Pags: 74-82
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