É verdade que ao longo dos 31 versículos de Gênesis 1 o único termo que se usa em referência a Deus é Elohim, e o nome que indica a pessoa do Senhor, i.e., Iavé, torna-se predominante no capítulo 2. Entretanto, essa distinção de vocábulos não demonstra evidência sólida de haver autores diferentes. Tal teoria foi primeiramente sustentada pelo médico francês Jean Astruc, nos idos de 1753. Achava ele que Gênesis 1 teria sido tirado de alguma fonte literária primitiva, produzida por um autor que só conhecia a Deus por esse nome, Elohim, mas que Gênesis 2 viria de uma fonte diferente, a qual conhecia o Senhor como Iavé (ou”Jeová”). J. G. Eichhorn, de Leipzig, estendeu essa divisão baseada nas fontes de Iavé-Elohim a todos os demais capítulos de Gênesis, chegando até Êxodo 6.3, que ele interpretou como se, de acordo com aquela “fonte”, o nome Iavé fosse desconhecido até os dias de Moisés.
A implicação disso era que todas as referências a Iavé encontradas em Gênesis teriam forçosamente vindo de outra fonte (J), a qual supunha ser Deus conhecido por esse nome antes dos tempos mosaicos. Êxodo 6.3 diz: “Apareci a Abraão, a Isaque e a Jacó como o Deus todo poderoso [El Shaddai], mas pelo meu nome, o SENHOR [Iavé], não me revelei a eles”. Essa declaração pareceria implicar que o nome em si era desconhecido antes do tempo de Moisés, mas essa interpretação se choca contra uma expressão costumeira dos hebreus. Há um significado muito especial em “conhecer o nome de Iavé” ou “saber que eu sou Iavé”. É expressão que ocorre pelo menos 26 vezes no AT e em todos os casos significa aprender mediante experiência real que Deus é Iavé, o Senhor que guarda a aliança, pune seu povo, cuida dele e o livra dos inimigos. Assim é que lemos em Êxodo 6.7: “Eu os farei meu povo e serei o Deus de vocês.
Então vocês saberão que eu sou o SENHOR, O seu Deus, que os livra do trabalho imposto pelos egípcios”. Até mesmo os egípcios deviam saber disso por amarga experiência pessoal, segundo Êxodo 14.4 — “E os egípcios saberão que eu sou o SENHOR [ Iavé]”— em consequência das dez pragas que sobre eles cairiam. Faraó sabia que o nome do Deus de Moisés era Iavé, pois se referiu ao Senhor em Êxodo 5.2: “Quem é o SENHOR para que eu lhe obedeça e deixe Israel sair?”. Portanto, devemos entender que o significado de Êxodo 6.3 é o seguinte: “Eu me apresentei perante Abraão, Isaque e Jacó como o Governador todo-poderoso da criação e Soberano sobre todas as forças da natureza [i.e., como El Shaddai, Deus todo-poderoso], mas não me apresentei a eles como o Deus que guarda a aliança, da maneira miraculosa e redentora que estou prestes a demonstrar ao livrar toda a nação de Israel do cativeiro egípcio”.
A palavra “Iavé” destaca a fidelidade e o cuidado de Deus para com o povo da aliança — embora isso diga respeito também ao trato pessoal do Senhor com os crentes. Assim, em seu relacionamento com Abraão e sua família, por todo o registro de Gênesis, o Todo-Poderoso é chamado Iavé. No entanto, contemplar o poder de Deus que realiza maravilhas a favor de Israel era algo que estava reservado à geração de Moisés. O relato de Êxodo é marcado por um milagre redentor após outro, com punições e julgamentos sobre o povo também, nos momentos de rebelião e apostasia, até que finalmente foi levado em segurança à terra de Canaã, sob o comando de Josué, onde deveria estabelecer uma nova comunidade sob a orientação da lei de Moisés. Assim é, pois, a maneira em que devemos entender a verdadeira intenção de Êxodo 6.3, e não pela forma simplista de Eichhorn e seus seguidores, criadores da escola documentária (JEDP).
Voltando-nos, pois, para a explicação da diferença existente no uso do nome que se encontra em Gênesis 2 em oposição a Gênesis 1, a razão dessa distinção fica perfeitamente evidenciada à luz da discussão anterior. “Elohim” era o único nome de Deus adequado à narrativa da obra do Criador, como o Regente de toda a natureza e de todo o Universo. Mas no capítulo 2 o Senhor entra em contato com Adão e com Eva; para o primeiro casal, portanto, Elohim apresenta-se como Iavé, o Deus da graça e da aliança. Assim, por todo esse capítulo, onze vezes encontramos o nome de Iavé associado ao de Elohim e jamais sozinho. Isso deixa implícito que o mesmo Deus que criou o Universo em seis estágios (ou eras) criadores é o mesmo Senhor que amava Adão e dele cuidava como filho, pois fora criado à sua imagem.
O mesmo se pode ver por todo o capítulo 3: o nome de “Iavé” jamais é empregado sozinho, mas sempre associado ao de “Elohim”. Só depois do comentário de Eva em Gênesis 4.1 é que encontramos a primeira ocorrência de”Iavé” (ou SENHOR) desacompanhado do nome Elohim. Diante dessa associação persistente dos dois nomes pelos capítulos 2 e 3, fica difícil imaginar de que forma Astruc, Eichhorn ou qualquer outro estudioso puderam elaborar a teoria segundo a qual havia uma fonte anterior que só conhecia Deus sob o nome de Iavé. Por causa da constante junção dos dois nomes, deveríamos imaginar que um revisor posterior decidiu juntar — mediante o uso de tesoura e cola — um pedacinho de “J” que terminasse com “Iavé” e um pedacinho de “E” OU “P” que se iniciasse com “Elohim”. Esse estranho processo de associação, que se estende por dois capítulos inteiros, jamais foi verificado na literatura de qualquer nação, em tempo algum.
Seria preciso uma extraordinária dose de credulidade para supor que isso aconteceu no caso de Gênesis 2 e 3. Antes de encerrarmos esta discussão, precisamos salientar que, com base no estudo da literatura comparada do antigo Oriente Próximo, todos os vizinhos de Israel seguiam a prática de referir-se a seus deuses por pelo menos dois nomes diferentes — chegando a três ou quatro. No Egito, Osíris (o senhor do outro mundo e juiz dos mortos) também recebia o cognome de Wennefer (“aquele que é bom”), Khentamentiu (“o maior dos ocidentais”) e Neb-Abdu (“senhor de Abydos”); e esses quatro títulos ocorrem na esteia de Ikhernofer, que está no museu de Berlim. Na Babilônia, o deus Bel era conhecido pelo nome sumério Enlile e também por Nunamnir (cf. o prólogo do Código Legal de Lipit-Ishtar). De modo semelhante, o deus-lua era ao mesmo tempo Sin e Nanna; e a grande deusa Ishtar também era conhecida como Inanna ou Telitum.
Na cultura cananéia pré-mosaica de Ugarite, no norte da Síria, Baal frequentemente era chamado Aliyan (e isso também ocorria em sua poesia paralelística, como no saltério hebraico); o rei-deus El também era conhecido como Latpan, e o artífice divino Kotharwa-Khasis também era chamado Hayyin (cf. Pritchard [ANET, p. 151 ], junto com Aqhat). Na Grécia, acontecia o mesmo: Zeus também era Crônion e Olímpio; Atenas, Palas; Apoio, Febo e Pítio ao mesmo tempo — nomes que aparecem em versos paralelísticos na poesia épica de Homero. Insistir em dizer que esse fenômeno dos escritos hebraicos indica a existência de uma fonte diferente é ignorar por completo analogia encontrada com abundância na literatura dos vizinhos de Israel. É difícil acreditar que tal divisão de fontes baseada nos nomes de Deus tinha se tornado uma teoria aceitável e respeitada, tendo em vista fatos conhecidos na literatura comparada.
Fonte: Enciclopédia de Temas Bíblicos
Respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da bíblia
Gleason Archer
Editora : Vida – pgs: 59-61
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