A confiabilidade das Escrituras Sagradas

A impressionante confiabilidade do texto que recebemos das Escrituras Sagradas

Por que não temos em mãos agora algumas cópias fiéis dos originais infalíveis? Porque a produção de uma cópia perfeita, até mesmo de um único livro, está tão longe da capacidade de um escriba humano que se torna necessário o Senhor Deus realizar um milagre para que se produza tal cópia. Ninguém pode esperar que o mais cuidadoso dos copistas seja capaz de reunir infalibilidade técnica para transcrever um documento original e assim produzir uma cópia idêntica. Não importa quão preocupado esteja com pingar todos os is, com cortar todos os tês e com evitar confusão entre parônimos, homônimos, homógrafos e homófonos (como “vultoso” e “vultuoso”, “Saul” e “Saulo”, “conhecer” [saber] e “conhecer” [copular], “laço” e “lasso”), acabará cometendo um deslize, ainda que involuntário. Nada senão a intervenção divina pode impedir o erro e garantir uma cópia inteiramente isenta de engano, neutralizando a propensão humana para o deslize na pontuação ou na grafia. Permanece, porém, o fato importante de que a comunicação perfeita é possível, a despeito dos erros técnicos de um original. A verdadeira questão diz respeito a erros de um copista: um eventual acúmulo de deslizes resultaria em obscuridade ou na perversão da mensagem que se pretendeu passar originalmente? Críticos textuais bem treinados, trabalhando com base em metodologia sadia, são capazes de retificar praticamente qualquer má informação resultante de um erro em qualquer manuscrito. Entretanto, no caso de documentos em que o ato de copiar foi realizado com a intenção deliberada de alterá-los ou com o desejo pessoal do copista de pervertê-los, é bem possível que a mensagem original fique alterada para sempre, sem que se possa recuperar.

A questão que se relaciona ao texto da Bíblia concentra-se nos dados da crítica textual. Existiria alguma prova objetiva da parte dos manuscritos das Escrituras de que os 66 livros nos foram transmitidos num grau de exatidão que nos garanta terem sido as informações contidas nos originais preservadas com perfeição? A resposta é um SIM bem grande.
Contrastando com a maior parte de outros documentos antigos que sobreviveram em múltiplas cópias (tais como o Conto de Sinuhe, egípcio, ou a “pedra de Behistun”, inscrição trilíngüe de Dario I), a verificação cuidadosa de muitas centenas de cópias manuscritas do século III a.C. até o século VI d.C. apresenta uma quantidade espantosamente limitada de variações na redação. Na verdade, os melhores especialistas da crítica textual reconhecem desde tempos antigos que, havendo qualquer variante que seja comprovada de modo aceitável e tomada do aparato no rodapé da página, a fim de substituir o texto aceito do manuscrito-padrão original, isso de modo algum indica alterações significativas na doutrina ou na mensagem.

Essas poucas variações só podem ser explicadas como o resultado de medidas especiais de controle, as quais seriam exercidas por Deus, o inspirador dos manuscritos originais, tendo ele assegurado a sua preservação, para benefício de seu povo. Um grau de desvio tão sério que alterasse o sentido redundaria na impossibilidade de se atingir os propósitos da revelação divina original: que os homens tivessem certeza da santidade e da graça de Deus e pudessem conhecer sua vontade para eles, a salvação. Os leitores porventura interessados em pesquisar mais ainda a questão da crítica textual do AT ou desejosos de maiores informações a respeito das antigas cópias das Sagradas Escrituras descobertas
nas grutas de Qumran, nas proximidades do mar Morto, deverão consultar a obra de Ernest Würthwein, The text of the Old Testament (Oxford, Basil Blackwell, 1957) ou minha obra Merece confiança o Antigo Testamento? (4.ed., São Paulo, Vida Nova, 1996, caps. 3 e 4). Quanto ao texto do Novo Testamento, consulte-se An introduction to the textual criticism of the New Testament, de A. T. Robertson (2.ed., New York, Doubleday, 1928) ou The text of the New Testament, de Vincent Taylor (London, Macmillan, 1961).*

As Escrituras e a inerrância

A exposição precedente demonstrou que a autoridade e os objetivos das Escrituras exigem que não haja erro nos escritos originais. Argumentamos, também, que a infalibilidade exige que haja inerrância, e isso seria seu corolário indispensável. Todavia, como observamos nas páginas iniciais desta “Introdução”, os revisionistas têm declarado com veemência que os chamados fenômenos das Escrituras não permitem que se faça uma defesa confiável da isenção de erros da Bíblia em seus originais, até mesmo em questões de história e de ciência. As muitas contradições e discrepâncias das Escrituras compelem-nos a escolher entre dois enunciados: o certo e o errado. Os que advogam essa abordagem invariavelmente nos apresentam listas com as tais contradições ou declarações que colidem com as descobertas da crítica histórica e da ciência.

Esse desafio não deve permanecer sem resposta, pois, se o argumento dos revisionistas estiver correto, deveríamos na verdade abrir mão da inerrância — e assumir todas as implicações devastadoras da possibilidade de uma revelação objetiva. A principal tarefa desta obra é demonstrar a insensatez dessa acusação, mediante o exame das alegadas discrepâncias e comprovar também, caso a caso, que a acusação é infundada, uma vez que toda a evidência correspondente tenha sido considerada. Outra importante linha de evidência seguida por esses estudiosos diz respeito ao uso pronunciado que fazem os autores do NT da tradução grega do AT chamada Septuaginta (LXX). Argumenta-se que, pelo fato de o texto da (LXX) desviar-se demais e com muita freqüência do texto hebraico massorético, o emprego de uma tradução tão inexata demonstra que, para os autores do NT, a autoridade do AT era conceituai, e não verbal.

Assim, se o ensino dotado de autoridade das Escrituras hebraicas só era encontrado em seus conceitos, e não em sua redação, isso excluiria quase todo e qualquer apego significativo à inerrância. De modo particular nos casos (ainda que raros) em que a LXX é um tanto inexata na tradução do original hebraico (pelo menos quanto ao hebraico que nos foi transmitido no texto massorético), é preciso concluir que os autores do NT não consideraram a redação exata e precisa do AT questão de máxima importância.
Embora à primeira vista essa conclusão pareça lógica, não leva em consideração várias questões sumamente importantes, como seguem:

1. A razão maior para que se usasse a LXX (originada entre os judeus de Alexandria, no Egito, nos séculos II e III a.C.) encontrava raízes no esforço missionário de evangelistas e apóstolos da igreja primitiva. Muito antes de os primeiros discípulos do Senhor se engajarem na divulgação das boas-novas, a LXX já havia aberto caminho em direção a quase todas as regiões do Império Romano de fala grega. Na verdade, tratava-se da única versão do AT em circulação fora da Palestina. Indo os apóstolos de uma cidade gentílica para outra, levando a mensagem de Cristo aos judeus da Dispersão, seu propósito primordial era mostrar que Jesus de Nazaré havia cumprido os desígnios e as promessas do AT, usando para isso o registro sagrado da verdade salvífica de Deus que já estava em suas mãos. Que outra forma de AT dispunham eles além da LXX? Somente os rabinos e peritos tinham acesso aos manuscritos hebraicos, e nenhuma outra tradução grega estava à disposição deles, senão a versão que ao passar dos séculos adquiriria reputação, a versão elaborada em Alexandria.

Por isso, quando os “nobres bereanos” voltavam para casa depois do culto na sinagoga para conferir os ensinos de Paulo e de Silas, de que outras Escrituras dispunham para consultar que não a LXX.? Suponhamos que Paulo tivesse decidido elaborar nova tradução, mais exata, para a língua grega, com base no texto hebraico, sem intermediações. Os bereanos poderiam replicar: “Não é assim que lemos em nossa Bíblia. Como vamos saber se você não distorceu a palavra, produzindo versões diferentes aqui e ali, com o objetivo de favorecer seus novos ensinos a respeito de Cristo?”. A fim de evitar suspeitas e más interpretações, era imperativo que os apóstolos e evangelistas permanecessem fiéis à LXX em sua pregação e ensino, tanto na forma oral quanto na escrita. Por outro lado, descobrimos que nos livros de Mateus e Hebreus a LXX desempenha papel de menor importância. As citações abundantes do AT que se encontram nesses dois livros são com freqüência apresentadas em linguagem diferente, estando perceptivelmente mais próximas do original hebraico que a própria LXX. ISSO se explica pelo fato de que ambos, Mateus e o autor de Hebreus, escreveram para leitores judeus radicados na Palestina, para os quais o texto massorético estava bem à mão.

2. Na imensa maioria dos casos em que a LXX é mencionada nos documentos do NT, a tradução grega fica acima da crítica no que concerne à exatidão. Os exemplos em que se menciona uma tradução mais parafraseada da LXX ficam em restrita minoria — ainda que esses pequenos desvios tenham gerado muitos debates por parte dos críticos. Entretanto, mesmo nos registros em que há notáveis diferenças de linguagem, quase não existem exemplos de citações do hebraico que não dêem apoio ao ensino que os autores do NT tencionam frisar ao citar o AT. Visto que a LXX contém muitas seções que diferem substancialmente do hebraico do texto massorético, só se pode inferir que os escritores apostólicos evitaram de propósito quaisquer passagens da LXX que pervertessem o sentido do original.

3. O argumento do uso da LXX, segundo o qual os autores do NT consideravam a inspiração do AT meramente conceituai, e não verbal, é completamente negado pelo exemplo do próprio Cristo. Por exemplo, em Mateus 22.32 o Senhor ressalta as implicações da redação exata de Êxodo 3.6: “… Eu sou o Deus de seu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó”. Essa citação em particular corresponde ipsis litteris ao texto da LXX, que apresenta a palavra “sou” (eimi), que não está de fato expressa no original hebraico, embora fique claramente subentendida numa oração sem verbo como essa, de acordo com as regras padronizadas da gramática hebraica. Jesus salienta um ponto aqui: Deus não teria falado de si mesmo como Deus de meros cadáveres em decomposição na sepultura por três ou quatro séculos. “Ele não é Deus de mortos, mas de vivos”, disse Jesus. Portanto, Abraão, Isaque e Jacó eram considerados vivos na época em que Iavé falou a Moisés na sarça ardente, em inícios do século xv a.C.
Atenção muito semelhante à linguagem exata do texto original do AT vê-se no emprego por parte de Cristo de Salmos 110.1 [109.1, na LXX], quando o Senhor discutia com os fariseus (Mt 22.43-45). A citação difere da LXX em apenas uma palavra (hypopodion, “debaixo de teus pés”). Mas a questão é que o SENHOR (Iavé) havia dito ao Senhor de Davi — ao mesmo tempo seu descendente messiânico — “Senta-te à minha direita, até que eu ponha os teus inimigos debaixo de teus pés”. Com essa passagem extraordinária, Jesus demonstrou que o Messias não só era descendente físico do rei Davi (do século X a.C), mas também seu Senhor divino.

4. Essa linha de raciocínio, segundo a qual a citação das Escrituras com base em uma tradução do original menos que perfeita necessariamente implica uma atitude de sujeição diante do texto inspirado, é raciocínio viciado por uma flagrante falácia. Todos nós, até mesmo os peritos altamente qualificados em línguas bíblicas, costumeiramente citamos as Escrituras fazendo uso de traduções publicadas tidas com padrão, disponíveis a nossos leitores e ouvintes. Entretanto, esse uso de várias versões, em inglês, em alemão, em francês, em espanhol ou em português, de modo algum comprova que optamos por um padrão rebaixado de inerrância escriturística. À semelhança dos apóstolos do século I, valemo-nos dessas traduções padronizadas para ensinar ao povo o que possa ser verificado na leitura individual da Bíblia. Entretanto, como se sabe, nenhuma dessas versões está totalmente isenta de falhas. Porém as usamos para uma comunicação mais eficaz do que se tivéssemos de traduzir diretamente do hebraico e do grego. No entanto, o uso de traduções que ficam aquém da perfeição de modo algum implica o abandono da convicção de que as Escrituras, como foram originalmente inspiradas, estavam livres de todo erro. Devemos, portanto, concluir que o emprego da LXX em citações no NT nada absolutamente prova a favor da ideia de que a Bíblia está cheia de erros.

Fonte:  Enciclopédia de Temas Bíblicos

Respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da bíblia

Gleason Archer

Editora : Vida – pgs 26-29