Enquanto João enxerga em Jesus o Logos que se faz carne, Paulo enxerga em Jesus a forma divina que se esvazia. A ekénosen do verbo kenósis (esvaziar) forma a base da cristologia paulina: “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus. Mas aniquilou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, sendo obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.6-8; cf. Rm 15.3; 2 Co 8.9). Esse esvaziamento é visto, pelo menos, de duas maneiras: na primeira, quando Emanuel se fez homem (Is 7.14), Ele abdicou completamente de Sua divindade, deixando de ser Deus e de agir como Deus – pelo menos durante o Seu tempo de vida na terra -, fazendo tudo o que fez pela fé. A segunda maneira de ver o esvaziamento de Jesus é entendendo que, não obstante, Ele abdicou das regalias do céu por um tempo, mas continuava sendo Deus, agindo plenamente como Deus e também como homem, fazendo uso de Suas prerrogativas divinas conforme lhe convinham.
As teorias kenósticas levantam ainda outras questões de difícil explicação, como, por exemplo, o fato de que a transmutação de Deus em homem “subverte completamente a doutrina da imutabilidade de Deus claramente ensinada nas Escrituras (Ml 3.6; Tg 1.17) e também implícita na própria ideia de Deus. O absoluto e o mutável são mutuamente exclusivos; e um Deus mutável certamente não é o Deus da Escritura”, conforme menciona Louis Berkhof ao explicar algumas teorias kenósticas. É possível encontrar em Jesus tanto características completamente humanas como sentimentos de fome, sede, cansaço, sono, ira, alegria, tristeza, tentação e dor; é possível também encontrar nele características absolutamente divinas, como: saber o que as pessoas pensavam, perdoar pecados, exercer poder sobre enfermidades e sobre a natureza, trazer mortos à vida, falar de Sua intimidade com Deus, abalar a terra no instante da Sua morte, ressuscitar e subir ao céu à vista de mais de 500 pessoas. As fragilidades humanas e os poderes divinos eram vistos nele, não como coisas separadas, mas simultâneas.
A certeza de ser quem era não o intimidava em alguma circunstância. Enquanto não convinha morrer, Ele se preservava quanto aos títulos que lhe pertenciam, evitando ser identificado como Messias e como o Filho de Deus; mas, quando chegou Sua hora, não havia mais razão para guardar segredos. A convicção de quem Ele era e a conveniência de não se manifestar expressamente aos que o odiavam conviviam em uma só pessoa. Tais segredos, entretanto, não existiam entre Ele e os Seus discípulos. Ambos, o homem Jesus e o Emanuel, coabitavam no mesmo corpo: “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade” (Cl 2.9). O destaque das duas naturezas de Jesus, a humana e a divina, é notório nos Sinóticos de um lado e no Evangelho de João de outro. Os Sinóticos destacam a humanidade de Jesus, mas não escondem a Sua divindade; João destaca a divindade de Jesus, mas não esconde a Sua humanidade.
Quanto à doutrina da imutabilidade, não há nela contradição alguma, visto que, por ser Deus, nada lhe é impossível, nem mesmo trocando a “forma de Deus” – conforme diz o texto, e Deus é Espírito – pela forma humana, material. Ele deixou a “forma de Deus”, mas não deixou de ser Deus. Pelo contrário, esse esvaziamento vem apenas confirmar que, para Ele, não há limite. Como Deus, Ele pôde fazer-se homem, porém, homem algum terá jamais a capacidade de fazer-se Deus.
Na forma de Deus
Essa expressão usada por Paulo não tem o sentido de descrever o formato ou a compleição física ou aparente de Deus, mas o de identificar o Filho com o Pai na natureza divina. A definição de Jesus é suficiente para aceitarmos Deus como Ele é: “Espírito” (Jo 4.24). É impossível descrever a forma de um espírito. O antropomorfismo de Deus – quando escritores sagrados dão formas humanas para Deus, tais como: as Suas mãos; os Seus ouvidos; as Suas costas; os Seus pés etc. – é uma maneira de expressar, em linguagem compreensível ao homem, Sua força, Sua proteção e Sua atenção prestada a nós por meio das vias sensoriais.
A figura de servo
No esvaziamento, Jesus assume a forma de servo. O paralelo está no termo forma: “forma de Deus” e “forma de servo” (Fp 2.6,7). Na humanidade, Ele se faz “semelhante”. O apóstolo prioriza o status de servo, deixando a humanidade por último. É como servo que Ele faz toda a diferença. Isso não significa que não basta ser homem e ter de ser servo para dar a ideia de extremos, a fim de que nos solidarizemos com Ele, mas sim que, como servo, Ele tem uma missão que transcende a de ser homem. Esse conceito já está formado em Isaías. Nos Evangelhos, a figura do servo sofredor, conforme mostrada pelo profeta, é mais perceptível em Marcos: “Porque o Filho do Homem também não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate de muitos” (Mc 10.45). “Eis aqui o meu servo, a quem sustenho; o meu Eleito, em quem se compraz a minha alma; pus o meu Espírito sobre ele; juízo produzirá entre os gentios. Não clamará, não se exaltará, nem fará ouvir a sua voz na praça.
A cana trilhada não quebrará, nem apagará o pavio que fumega; em verdade, produzirá o juízo” (Is 42.1-3; cf. Is 52.13-53.12). O servo sofredor de que trata o profeta não é a nação de Israel, nem mesmo os remanescentes da casa de Israel, mas uma pessoa especial. O servo sofre, e, sofrimentos, o “nosso castigo” é transformado em paz (Is 53.5). Os teólogos liberais dizem que Jesus nunca atribuiu sentido expiatório à Sua morte. “Isso é coisa da Igreja primitiva” – dizem. É difícil concordar com os liberais diante de alguns textos em que Jesus não apenas antevê a Sua morte, mas atribui a ela o significado que eles dizem que Ele mesmo não dá. De acordo com o profeta Isaías, a aliança é feita pelo servo (Is 42.6). As alianças no passado eram sempre marcadas por algum sinal: a aliança edênica foi simbolizada pela árvore da vida; a aliança com Noé, de que nunca mais o Senhor destruiria a terra com água, foi o arco-íris (Gn 9.12,13); com Abraão, a circuncisão (Gn 17.10); com Moisés, a aliança foi com sangue (Êx 24.8).
A aliança do Novo Testamento foi também feita com sangue: “E disse-lhes: Isto é o meu sangue, o sangue do Novo Testamento, que por muitos é derramado” (Mc 14.24; cf. Mt 26.28; Lc 22.20; 1 Co 11.24). Ademais, Jesus disse: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Por que Jesus teria feito isso? Por um gesto de solidariedade aos amigos? No entanto, Seus amigos não estavam em apuros! Quem estava em questão era Ele mesmo. Não foi uma barganha. A extensão desses “Seus amigos” diz respeito não apenas aos amigos que o rodeavam e faziam parte do colégio apostólico, mas também a todos aqueles que se agregam a Ele. Que outro motivo haveria para Jesus dar a vida por outros, quando isso não era cobrado de ninguém? Jesus apontava sempre para a Sua morte ao avisar: “E começou a ensinar-lhes que importava que o Filho do Homem padecesse muito, e que fosse rejeitado pelos anciãos, e pelos príncipes dos sacerdotes, e pelos escribas, e que fosse morto, mas que, depois de três dias, ressuscitaria” (Mc 8.31).
Jesus não apenas estava consciente de que morreria, mas de que Sua morte tinha uma importância singular; por isso, era necessária e não seria fruto de um martírio, mas de um propósito divinamente elaborado. Ele morria como servo para estabelecer a aliança. A conclusão da Igreja é transmitida como doutrina pelos apóstolos, que corroboram com o propósito daquele que aceitou ser chamado de “Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”(Jo 1.29).44 Como servo, Jesus sofre uma morte ignominiosa na cruz: “A si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fp 2.8). O tipo de morte ao qual Jesus se submeteu era aplicado somente aos piores facínoras. Esses mortos eram considerados “malditos”(Dt 21.23). Foi por isso que Jesus passou: fez-se maldito por nós (G1 3.13; Hb 12.2). Sua morte no madeiro contribuiu para que os judeus o desprezassem ainda mais.pelos Seus
Livro: TEOLOGIA PARA PENTECOSTAIS UMA TEOLOGIA SISTEMÁTICA EXPANDIDA, Vol 2, Pags 47-49