A mais séria de todas as falsas pressuposições subjacentes à hipótese documentária e à abordagem da crítica da forma (a primeira presume que nenhuma parte da Torá teve forma escrita senão depois de meados do século IX a.C, e a segunda afirma que todo o texto hebraico do Pentateuco somente foi redigido depois do exílio) é que os israelitas esperaram durante muitos séculos, após a fundação de sua comunidade, até ver a Torá na forma escrita. Tal pressuposição desaparece diante de todas as descobertas arqueológicas dos últimos oitenta anos, segundo as quais todos os vizinhos de Israel conservaram registros escritos de sua história e religião desde antes dos tempos de Moisés. Talvez as grandes quantidades de inscrições em pedra, barro e papiro exumadas na Mesopotâmia e no Egito pudessem ser questionadas como prova do extenso uso da escrita na própria Palestina — até a descoberta, em 1887, dos tijolos de barro de Tell el-Amarna, no Egito, que datam de cerca de 1420 a 1380 a.C. (época de Moisés e Josué).
Esse arquivo contém centenas de tabuinhas escritas em caracteres cuneiformes babilônicos (nessa época, era a língua da correspondência diplomática no Oriente Próximo). Eram comunicações à corte egípcia por parte de oficiais e de reis palestinos. Muitas dessas cartas contêm relatos de invasões e ataques dos Habiru e dos chamados SA.GAZ (a pronúncia desse logograma pode ter sido “habiru” também) contra as cidades-estados de Canaã.
O próprio Wellhausen chegou à conclusão de que teria de desprezar completamente essa evidência, após a divulgação da descoberta desses tijolos de Amarna, em 1890, mais ou menos. Ele se recusou a considerar as implicações dos fatos descobertos e agora estabelecidos de que Canaã, até mesmo antes de a conquista israelita completar-se, possuía uma civilização de elevado nível de instrução literária (ainda que escrevessem na língua babilônica, em vez de em seu próprio idioma).
Os proponentes posteriores da hipótese documentária revelaram-se igualmente incapazes de uma abertura no que concerne às implicações dessas descobertas. O golpe mais cruel sobreveio, porém, quando se decifraram as inscrições alfabéticas de Serabit el-Khadim, na região das minas de turquesa do Sinai, exploradas pelos egípcios durante o II milênio a.C. Tais inscrições consistiam num novo jogo de símbolos alfabéticos, parecidos com os hieróglifos egípcios, mas escritos num dialeto cananeu muito parecido com o hebraico. Eles continham registros de quotas de mineração e dedicatórias à deusa fenícia Baalat (ao que tudo indica, equivalente da divindade egípcia Hátor). O estilo irregular da execução exclui toda possibilidade de atribuir esses escritos a um grupo seleto de escribas profissionais. Existe apenas uma conclusão possível a ser tirada dessas inscrições (publicadas em The proto-Sinaitic inscriptions and their decipherment [As inscrições proto-sinaíticas e sua decifração] (Cambridge, Harvard Univ., 1966).
Já nos séculos XVII e XVI a.C, até mesmo as pessoas das camadas sociais mais baixas da população cananéia, os escravos das minas que trabalhavam sob feitores egípcios, sabiam ler e escrever em sua própria língua. Uma terceira descoberta importante foi a biblioteca de tabuinhas de barro na região síria ao norte de Ras es-Shamra, conhecida em tempos antigos como Ugarite, onde havia muitas centenas de tabuinhas escritas por volta de 1400 a.C, num dialeto cuneiforme cananeu, muito parecido com o hebraico. Ao lado de cartas comerciais e documentos do governo (alguns dos quais registrados em caracteres babilônicos cuneiformes), esses tijolos continham muita literatura religiosa e também relacionada aos amores, às guerras e a aventuras empolgantes de várias divindades do panteão cananeu, como El, Anate, Baal, Asserate, Mote e muitos outros, composta em forma poética, à semelhança da poesia hebraica de paralelismos, como as que se encontram no Pentateuco e nos Salmos de Davi.
Temos aqui novamente provas irrefutáveis de que os conquistadores hebreus sob o comando de Josué, tendo emigrado de uma cultura que atribuía grande valor às letras, a egípcia, chegaram a outra civilização que usava a escrita com incomum liberdade. Além disso, a alta porcentagem de literatura religiosa encontrada tanto em Ras Shamra como em Serabit el-Khadim nega veementemente a suposição de que, de todos os povos do antigo Oriente Próximo, somente os hebreus não se interessaram ou não se esforçaram por dar forma escrita a seus conceitos religiosos, senão mil anos mais tarde. Só a mais inalterável modalidade de desvio mental por parte de estudiosos liberais pode explicar como 48 desprezam e evitam a grande massa de dados objetivos que agora dão apoio à proposição de que Moisés poderia ter escrito e com toda a probabilidade realmente escreveu os livros que lhe são atribuídos.
Uma falácia mais absurda ainda acha-se sob a abordagem moderna da teoria documentária, não só com respeito à autoria do Pentateuco, mas também no que se refere à composição de Isaías 40-66 como obra autêntica do próprio Isaías, que viveu no século VIII a.C, e com respeito à data do século VI para o livro de Daniel. Todas essas teorias racionalistas, que atribuem datação muito posterior e natureza espúria a esses livros do AT, repousam numa suposição firmemente sustentada: a impossibilidade categórica da profecia bem-sucedida sobre acontecimentos futuros. Toma-se por absolutamente certa a inexistência da revelação divina autêntica nas Escrituras, de modo que todas as profecias que pela aparência teriam sido cumpridas na verdade foram resultado de mentira piedosa. Em outras palavras, as predições não foram escritas senão depois de “cumpridas” — ou quando prestes a cumprir-se.
O resultado é uma falácia lógica conhecida como petitio principii, ou “raciocínio em círculo”. Isso significa que a Bíblia dá testemunho da existência de um Deus pessoal que opera milagres e revelou seus propósitos futuros a profetas escolhidos para orientação e o estímulo de seu povo. Mediante a abundância de predições cumpridas, as Escrituras fornecem a mais impressionante evidência dos fenômenos sobrenaturais, demonstradas por um Deus pessoal que tem cuidado de seu povo o suficiente para revelar-se a ele e revelar sua vontade quanto à salvação. No entanto, o racionalista aborda essa evidência toda com a mente completamente fechada, presumindo que não existe o chamado sobrenatural e que, portanto, não é possível que se cumpram as profecias. Existindo esse tipo de desvio, é impossível dar a devida atenção a qualquer evidência que diga respeito ao assunto que estamos investigando.
Após cuidadosa ponderação e estudo da história do surgimento da alta crítica moderna, segundo a prática dos adeptos da doutrina documentária e da escola da crítica da forma, este autor está convicto de que a razão básica para a recusa em aceitar a evidência arqueológica objetiva, que parece hostil ante a teoria desses críticos, que desaprovam o sobrenatural, encontra-se na mentalidade de autodefesa essencialmente subjetiva. Assim é que se torna absolutamente essencial que os documentaristas atribuam as predições do cativeiro babilônico e a subseqüente restauração (como as que encontramos em Lv 26 e em Dt 28) a uma época em que tais acontecimentos já pertenciam ao passado. Essa é a verdadeira base filosófica para que se atribuam tais partes (incluídas no “Código dos Sacerdotes” ou “Escola Deuteronômica”) ao século V a.C, ou mil anos depois da época em que se crêem tenham sido escritas.
E que, obviamente, nenhum mortal pode predizer com sucesso o que ainda jaz no futuro, ainda que a uns poucos anos. Visto que um Moisés do século XV a.C. precisaria ter previsto o que haveria de acontecer em 587 e em 537 a.C. a fim de poder escrever capítulos como esses, na verdade ele nunca poderia tê-los escrito. No entanto, o Pentateuco afirma que Moisés escreveu apenas o que o Deus Todo-Poderoso lhe revelou. Ele não registrou o mero produto de uma previsão. Daí não haver nenhuma dificuldade lógica em supor que Moisés pudesse ter previsto, sob inspiração divina, acontecimentos que ainda estavam num futuro longínquo — ou que Isaías no início do século VII soubesse de antemão do cativeiro babilônico e do subseqüente retorno a Judá, ou que Daniel pudesse ter predito os grandes acontecimentos da história ainda por ocorrer entre seus próprios dias (530 a.C.) e a vinda de Antíoco Epifânio em 170 a.C.
Em todos esses casos, a profecia foi proveniente de Deus, o Senhor da história, e não de algum homem. Portanto, não existe razão lógica para que Deus ignore o futuro que ele próprio faz acontecer. Além de tudo, o horizonte profético de Daniel (Dn 9.24-27) na verdade aprofunda-se e vai além do período dos macabeus, que lhe atribuíram os estudiosos racionalistas, pois a profecia aponta para 27 d.C como o ano exato em que Cristo nasceu (Dn 9.25, 26). O mesmo se deve dizer a respeito da predição de Deuteronômio 28.68 49 sobre as conseqüências da queda de Jerusalém em 70 d.C. e da predição de Isaías 13.19, 20, da total e definitiva desolação da Babilônia, que não aconteceu senão depois da conquista pelos muçulmanos no século VII d.C.
Não há como refutar o cumprimento de profecias como essas, tanto tempo depois, mediante a alegação de que os livros que as contêm foram escritos depois dos acontecimentos. Vemos, assim, que esse princípio orientador subjacente à estrutura da hipótese documentária de modo algum pode manter-se em base objetiva e científica. Portanto, essa teoria deve ser abandonada em todas as instituições de ensino superior nas quais ainda é ensinada. (Quanto aos textos que alegadamente não são de Moisés, com base em evidência interna, veja-se o artigo sobre Êxodo 6.26, 27.)
Fonte: Enciclopédia de Temas Bíblicos
Respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da bíblia
Gleason Archer
Editora : Vida – pgs: 47-49