A graça
A graça deve constituir o princípio deste tópico, e Gênesis revela que a graça, longe de ser mera resposta ao pecado, é fundamental para a própria criação. Isso transparece na decisão de conduzir “ muitos filhos à glória” envolvida na formação do homem à imagem de Deus e na preparação de um mundo no qual a filiação poderia ser levada à maturidade , e a imortalidade estaria ao alcance do homem (2:9; 3:22). A entrada do pecado introduz na cena outros aspectos da graça, nas medidas tomadas por Deus para preservar a humanidade em algum nível de decência e ordem, e levar certos homens a entrarem em aliança com Ele, por meio dos quais abençoaria finalmente o mundo (18:18).
Como “ Salvador” (isto é, Preservador) “ de todos os homens” , Ele é apresentado em Gênesis restringindo a corrupção e a anarquia produzidas pelo pecado, por meio da disciplina do trabalho duro e da mortalidade (3:17, 22), do emprego construtivo dos recursos naturais (3:21), das sanções da lei (9:4-6) e da capacidade de reconhecer obrigações morais (c/. o uso que Abimeleque fez de expressões morais em 20:5,9), como também por meio da influência direta dos Seus servos (por exemplo, 50:20). Como Salvador “ especialmente dos fiéis” (ou “ dos que crêem” ), Ele revela Sua graça escolhendo-os, chamando-os, justificando-os, estabelecendo aliança com eles e ensinando-lhes os Seus caminhos. Estas atividades vêm resumidas nas duas últimas seções seguintes.
Eleição
Rm 9:6-13 mostra que Gênesis deixa indubitável a soberana escolha de-Deus, mediante as narrativas do nascimento de Isaque e de Jacó Particularmente Jacó foi assinalado em detrimento de Esaú “ ainda antes de haverem nascido, e sem que tivessem feito nem o bem nem o mal” . Longe de serem voluntários fortuitos, esses homens deviam sua existência à intervenção de Deus (pois, como Sara, Rebeca era estéril), e a escolha divina foi mantida contra uma longa história de vacilações e intrigas paternas. A mesma iniciativa divina levantou todos os libertadores, desde Sete, o “ designado” sucessor de Abel (4:25), passando por Noé (cujo papel foi profetizado por ocasião do seu nascimento, 5:29) e Abraão (chamado para longe do seu país e da sua parentela), até José, “ enviado” , contrariamente a todas as intenções humanas, “ para conservar… um remanescente” da família escolhida(45:7,8).
Contudo, é importante notar, de passagem, que a escolha de Isaque e de Jacó, antes de nascerem, e a correspondente rejeição de Ismael
e de Esaú, estavam explicitamente relacionadas com a função deles,
não com a sua salvação ou perdição. Isto é especialmente claro no caso
de Ismael, rejeitado numa capacidade e aceito na outra. Quando
Abraão orou: “ Oxalá viva Ismael diante de ti” , a resposta de Deus foi
“ Não” ao pedido implícito de que tomasse o lugar de Isaque, mas foi
“ Sim” às palavras em seu sentido literal. … eu te ouvi: abençoá-loei…” (17:18-21). A eleição, em Gênesis, refere-se ao fato de o homem
estar ou não na linha de sucessão que levava a Cristo, a “ semente” que
seria para bênção das nações (Rm 9:5; Gl 3:16).
Recuperação do pecador
Desde o momento da queda, os efeitos mortais do pecado constituem um dos principais temas de Gênesis, mostrando sua imediata força repulsora entre o homem e Deus, seu crescente domínio do homem, culminando na depravação geral evidente no dilúvio, e suas várias explosões na forma de presunção em Babel, de decadência em Sodoma, e, no âmbito familiar, de todos os pecados do homem constantes do decálogo. A obra salvadora de Deus não é menos completa nem menos variada. Sua maneira de buscar o pecador pode ser mediante a direta convicção de pecado (seja pelo interrogatório pessoal dirigido a Adão e a Caim, seja pela enigmática prova que quebrantou os irmãos de José em 42:21; 44:16), ou mediante a pura graça que produziu a surpresa reação de Jacó em Betel. Mas é Deus, e não o homem, quem busca.
Ló é levado à segurança porque “ achou mercê” ou “ graça” (19:19) quase que a despeito de si próprio. E também é a graça que dá início a toda a
história de Noé (6:8).Da parte do homem, poderíamos ser tentados a supor (menos quanto à indicação sobre Noé que acabamos de mencionar) que a retidão do culto e da vida era o passaporte que assegurava a sua aceitação,
até chegarmos à afirmação que põe fim à especulação, a saber, que
Abraão foi justificado pela fé (15:6; cf. Rm 4:1-5,13-25) — pronunciamento que lança luz não só sobre cada período subsequente, mas também sobre cada período antecedente, deixando claro que, desde o primeiro caso, a fé fora indispensável para o acesso a Deus (Hb 11:4). Mas em Gênesis a salvação é muito mais que simples aceitação.
Plenamente desenvolvida, é uma intimidade com o Céu, de matizes tão
variados como os personagens que a desfrutam. Homens tão diferentes
como Enoque, para quem se derreteu a barreira da morte; Abraão, “ o
amigo de Deus” , cuja devoção foi provada até um ponto quase que
além de toda possibilidade de se aguentar; o seu servo Eliézer (capítulo
24; cf. 15:2), com sua fé reta, semelhante à do centurião; e Jacó, cuja
carreira foi virtualmente “ a domesticação de uma víbora” , sintetizada
na luta que travou em Peniel. E essa intimidade não era somente uma
afinidade de sentimentos e idéias, mas a relação assumida e firmada numa aliança, na qual Deus prometia ser o Deus da descendência deles
(“ Serei o seu Deus” , 17:7), e o homem respondia: “ O Senhor será o
meu Deus” (28:21).
Na esfera do caráter e da conduta em relação aos seres humanos, a
salvação também vai além de uma justiça meramente imputada. Numa
época em que não havia lei, Noé ficou sozinho em sua integridade (6:9),
e em contato com Sodoma Abraão evitou até as riquezas da cidade por
amor a Deus (14:22,23), enquanto que Ló se apôs à sua corrução
(19:7-9; cf. 2 Pe 2:7,8), embora ao fazê-lo tenha revelado possuir um
código moral tristemente desequilibrado. Uma insensibilidade semelhante a essa, em Abraão e Isaque, poderia ter-lhes granjeado o desprezo dos pagãos em certas ocasiões. Mas, se a natureza daqueles homens era tão falível como a dos seus contemporâneos, pela graça eles podiam elevar-se a altitudes imensuravelmente maiores.
A intercessão de Abraão por Sodoma, como a de Judá por Benjamim, demonstra um interesse altruístico que é próprio dos santos, de Moisés a Paulo, enquanto que a paciência, a pureza, a sabedoria e o amor de José para com os seus inimigos, são pouco menos que semelhantes às virtudes de Deus. Quanto ao aspecto final da salvação, a libertação do último inimigo, Gênesis mostra apenas débeis delineamentos. “ És pó e ao pó tornarás” tem um toque de finalidade, mas o contexto deixa uma porta
entreaberta, pois uma vez Deus tinha soprado a vida nesse mesmo pó.
Por duas vezes também há vislumbres mais diretos do Seu poder sobre
a morte: uma vez quando Enoque foi tomado (5:24), e outra quando
Abraão compreendeu que Deus poderia trazer Isaque de volta dos mortos (“ voltaremos para junto de vós” , 22:5: cf. Hb 11:19).
Contudo, estas lições eram para outra época. Nesse estágio, a esperança era dirigida por Deus rumo ao crescimento da família escolhida, à posse da terra e à bênção das nações. Se nesse meio tempo a morte era recebida tranquilamente pelos patriarcas, era em grande parte porque o
sepultamento feito no túmulo da família antecipava a entrada daquela
família em sua herança (cf. 47:29; 50:24); pois a “ semente” escolhida é
que era investida da promessa e da missão, não qualquer desses indivíduos como tais. “ Certamente Deus vos visitará” (50:25). Esta esperança bastava. A partir do seu cumprimento, franquear-se-ia, sem falta, a plenitude da salvação como a conhece o Novo Testamento. Gênesis contenta-se em vê-la de longe e, nesse ínterim, em interessar-se pelas nascentes deste rio, antes que pelo estuário e pelo oceano distantes.
GÊNESIS Introdução e Comentário –
REV. DEREK KIDNER, M. A –
SÉRIE CULTURA BÍBLICA, págs: 36-39
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