De que maneira Gênesis 1 pode harmonizar-se com a evolução teística?

Ao tratar dessa questão, devemos definir cuidadosamente nossos termos, visto que “evolução” é palavra usada com vários sentidos por diversos tipos de pessoas. Devemos fazer distinção entre evolução como filosofia e evolução como mecanismo descritivo do desenvolvimento das espécies de um estágio inferior, primitivo, para outros “mais elevados” ou mais complexos, no decurso da história geológica. Além disso, precisamos estabelecer o que se quer dizer por evolução teística. Daí estaremos em melhores condições para tratar da relação entre a evolução e o criacionismo de Gênesis 1.

A evolução como filosofia

A evolução como filosofia procura explicar que o universo físico — e de modo especial o biológico — tem um autodesenvolvimento a partir da matéria bruta, cuja origem é desconhecida, podendo-se, todavia, considerar que tenha existência eterna, que não tenha possuído um começo. A evolução filosófica elimina toda e qualquer direção ou intervenção da parte de um Deus pessoal e lança dúvidas quanto à realidade até de um Poder Superior. A questão toda é regida por leis físicas imutáveis e, por último, é o produto de mero acaso. Não há razão para a existência, tampouco para um propósito real na vida. O homem deve agir como se fora um fim em si próprio. Ele é seu próprio legislador por excelência e a ninguém deverá prestar conta senão à sociedade humana. A lei e a ética têm base utilitária — produz o melhor para o maior número de indivíduos.

Nem todas essas posições foram propostas por Charles Darwin em sua obra clássica A origem das espécies. No entanto, ele não defenderia hoje uma posição de ateísmo persistente, própria da evolução filosófica, pois acreditava num Deus Criador como logicamente necessário para explicar a existência anterior da matéria bruta original, a partir da qual surgiram as formas primitivas de vida. Seria mais certo chamar Darwin teísta, em vez de ateísta, ainda que seu sistema tenha sido adotado por pessoas que negam a existência de Deus. No entanto, devemos salientar que o ateísmo persistente, o qual se autodefine como o método mais racional e lógico dentre todos os que se propõem a analisar a realidade, é na verdade um sistema derrotado por si só, incapaz que é de prover uma autodefesa lógica. Isso quer dizer que, se a matéria toda se associou de tal forma, por mero acaso, sem a direção de nenhum Poder Superior, nenhuma Inteligência Transcendental, segue-se necessariamente que  as moléculas do cérebro humano também são produto do mero acaso.

Em outras palavras, pensamos da forma que imaginamos simplesmente porque os átomos e as moléculas de nosso cérebro se associaram por acaso, sem nenhuma orientação ou controle transcendental. Portanto, até mesmo as filosofias dos homens, seus sistemas de lógica e todas as abordagens da realidade que apresentam são coisas fortuitas. Não existe absolutamente validade alguma em qualquer argumento apresentado pelo ateu contra a posição do teísmo. Com base em pressuposições próprias, o ateu anula completamente a si próprio, visto que, pelas suas premissas, seus argumentos são destituídos de valor. Conforme o que ele mesmo professa, ele pensa como pensa simplesmente porque os átomos de seu cérebro se associaram do jeito que se associaram.

Se assim for, o ateu não poderá dizer honestamente que sua opinião tem mais valor que a contrária. Seus postulados básicos se contradizem e anulam a si mesmos, pois, quando o ateu afirma que não existem absolutos, ao mesmo tempo está afirmando um absoluto dogmático. Tampouco consegue provar a inexistência do Criador sem apelar para uma lógica que essencialmente depende da existência de Deus para ter algum valor. Afora a garantia transcendental da validade da lógica, quaisquer apelos à lógica ou à argumentação são simples manifestações do comportamento descrito como associação das moléculas que compõem o cérebro do pensador.

A evolução como mecanismo descritivo

A evolução como mecanismo descritivo refere-se ao processo pelo qual formas menos avançadas de vida desenvolvem-se e atingem maior complexidade. Pensa-se que isso ocorre por causa de algum tipo de diretriz interna dinâmica que, sem nenhum controle ou interferência externa, opera de acordo com padrões próprios. Nos dias de Darwin, acreditava-se que esse desenvolvimento era resultante de um acúmulo de características casuais e da retenção de leves variações surgidas durante os estágios primitivos da evolução das espécies, sendo passadas de geração a geração mediante a genética. No entanto, desde os dias de Darwin, essa fórmula de evolução baseada no processo mecanicista, governado pelo princípio da “sobrevivência do mais apto”, por causa de uma variedade de razões, veio a perder apoio no século XX. As experiências de G. J. Mendel com a genética das plantas demonstraram de modo conclusivo que o grau de variações possíveis dentro da mesma espécie estava estritamente limitado, não oferecendo nenhuma possibilidade de evolução que permitisse o surgimento de uma espécie nova, diferente.

Após grande número de experiências a respeito da impossibilidade de as características serem herdadas, ficou determinado pelos geneticistas, no final do século, que não existia absolutamente essa coisa chamada transmissão de características adquiridas, visto não haver um modo de codificá-las nos genes dos pais que as desenvolveram (cf. Darwin, before and after [Darwin, antes e depois], de Robert E. D. Clark, Chicago, Moody, 1967). Quanto à série contínua de transição pela teoria de Darwin, para marcar a ascensão de espécies “inferiores” para “superiores”, na escala do desenvolvimento biológico, a pesquisa mais aprofundada possível levou os cientistas finalmente a entenderem de modo conclusivo que não existem os chamados “elos faltantes”.
Assim é que Austin H. Clark (The new evolution, New Haven.Yale, 1930) confessa: “Se estivermos dispostos a aceitar os fatos, devemos acreditar que jamais existiram os chamados [seres] intermediários, ou, em outras palavras, que esses grupos maiores desde o início mantiveram entre si o mesmo relacionamento que possuem hoje”. De modo semelhante, G. C. Simpson conclui que cada uma das 32 ordens de mamíferos apareceu de repente no registro paleontologia). “Os membros mais primitivos e mais antigos de cada espécie tinham já as suas características básicas, e nenhum caso se conhece de uma sequência contínua aproximada que partiu de uma espécie para outra” (Tempo and mode in evolution, New York, Columbia, 1944, p. 106).

Portanto, foi necessário que Clark e Simpson propusessem um tipo inteiramente antidarwiniano de evolução, a que deram o nome  “teoria do quantum” ou “evolução emergente”. Tal teoria afirma que novas formas surgem ou dramaticamente por mero acaso ou por causa de algum tipo de resposta criativa a novos fatores ambientais. Nenhuma hipótese se aventou a respeito da origem dessa capacidade de “resposta criativa”. Da perspectiva do darwinismo, isso dificilmente poderia ser considerado evolução. Assim observa Carl F. H. Henry: “A suposição do aparecimento abrupto ultrapassa o campo da pesquisa científica, da mesma forma que o recurso a forças criadoras sobrenaturais” (R. Mixter, org., Evolution and Christian thought today, Grand Rapids, Eerdmans, 1959, p. 211).

Quanto a algumas séries que passaram por desenvolvimento e são habitualmente mostradas em livros escolares e em museus, tentando demonstrar como a evolução funcionou nos cavalos e nos seres humanos desde os tempos mais antigos da era cenozóica até os tempos modernos, é preciso entender que tais demonstrações nada comprovam a respeito do mecanismo que presidiu esse desenvolvimento. A constatação de continuidade num projeto biológico básico não significa de modo algum estar comprovado que uma espécie “inferior” evoluiu para uma “superior” mediante algum tipo de dinâmica interna, de acordo com a exigência da teoria da evolução. Pois se esse visitante do museu se dirigisse a outra seção, a da ciência industrial, descobriria ali outra série análoga à primeira, esta de automóveis, iniciando-se em 1900 e chegando até nossos dias.

Indo de estágio a estágio, de fase a fase, o visitante poderia traçar o desenvolvimento da série de carros Ford, desde o mais antigo modelo T até o grande e luxuoso LTD, da década de 1970. Todos sabemos que houve uma continuidade do projeto básico, que se alterava em estágios definidos, às vezes apresentando novas características, verdadeiramente surpreendentes. Entretanto, o visitante ficaria consciente de que foram os engenheiros da Ford Motor Co. que projetaram as mudanças e as implementaram, mediante técnicos especializados que seguiram seus desenhos. A subida do primitivo hippus até o moderno cavalo de corrida explica-se exatamente da mesma maneira — exceto que nesse caso o arquiteto ou engenheiro foi o próprio Criador.

Evolução teística

A evolução teística concebe a existência de Deus como Criador de todas as substâncias materiais do Universo, como Projetista de todos os processos seguidos pelas várias espécies botânicas e zoológicas no desenvolvimento de seu plano mestre. Diferentemente do evolucionista filosófico, o teísta insiste em que a matéria não era eterna, mas foi criada por Deus, do nada, tendo sido controlada em seu desenvolvimento segundo o plano que o Senhor traçou. Em outras palavras, o mecanismo todo do processo evolucionista foi e continua sendo traçado e controlado pelo Criador, não por alguma força misteriosa e inexplicável, que não se pode pesquisar nem entender. Quando sopesamos a questão da evolução teística poder ou não ser harmonizada com Gênesis 1, precisamos analisar com o máximo cuidado e verificar se estamos tratando de um conceito teísta ou semiteísta de um Deus que apenas lançou o sistema, tendo-o programado antecipadamente, como se faz com um computador, e depois retirou-se para ficar observando o funcionamento automático do maquinismo cósmico.

Esse Criador está fora do alcance da oração e não se interessa de modo ativo e contínuo pelas necessidades de suas criaturas. Não existe, então, comunicação com o Senhor, de quem tampouco podemos esperar salvação. Tudo se encerra no arcabouço do determinismo rígido. Outra alternativa é que estejamos tratando de uma evolução teística em que há lugar para a oração e para o relacionamento entre os seres humanos e o Criador. Tal evolução teística, contudo, concebe Deus como o que determina a ascensão das espécies biológicas, mediante certo tipo de mecanismo evolutivo, cujo dinamismo e direção encontram-se em si mesmas. Diante do fraco fundamento científico em que assentam os dados concernentes à evolução proposta por Darwin e diante do fato de que foi praticamente rejeitado pelos evolucionistas “emergentes”, parece existir pouquíssimo espaço até para o  cientista teísta poder apegar-se com firmeza a algum tipo de evolucionismo.

Essas duas modalidades de evolucionismo apresentam entre si a mesma semelhança que se verifica entre a democracia americana e a “democracia” dos países da extinta cortina de ferro. Se algum cientista aceitar as implicações da integridade das espécies de acordo com os limites de Mendel, poder-se-á talvez afirmar que ele aceita os sucessivos estágios da criação das espécies botânicas e animais e os gêneros e ordens “segundo a sua espécie”, como está bem claro em Gênesis 1.11, 12, 21. Se esse cientista entender que os seis dias da criação, na mente do Criador, são uma sucessão de estágios definidos no desenvolvimento ordenado do mundo biológico até a criação do homem, concordaríamos então que isso se harmoniza com a intenção básica do primeiro capítulo de Gênesis.

Tudo isso, naturalmente, depende de o evolucionismo teísta aceitar Adão e Eva como indivíduos literais, históricos, criados. Muitos deles não o fazem, mas concebem que o homo sapiens se desenvolveu gradualmente de um hominídeo subumano para depois, finalmente, desenvolver uma consciência de Deus — momento em que, seja lá quando tenha ocorrido, o homem-macaco tornou-se “Adão”.
Esse, por exemplo, foi o conceito de Lecomte de Noüy em Human destiny [Destino humano] (New York, Longmans, Green & Co., 1947), para quem talvez em torno de 30000 a.C, o Cro-Magnon se tornou verdadeiramente homem por uma espécie de mutação espiritual que lhe conferiu a capacidade de fazer escolhas morais responsáveis. Esse tipo de abordagem dificilmente se pode conciliar com a apresentação de Adão e de Eva como indivíduos históricos com emoções e reações pessoais conforme aparecem em Gênesis 2 e 3 — e certificadas por 1Timóteo 2.13, 14. Qualquer interpretação supra-histórica de Adão, tal como defende a neoortodoxia, sem dúvida alguma entra em choque com a Escritura Sagrada e com a fé evangélica.

Fonte: Enciclopédia de Temas Bíblicos
Respostas às principais dúvidas, dificuldades e “contradições” da bíblia
Gleason Archer
Editora : Vida – pgs: 50-53

 

 


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