Restrições na interpretação da Bíblia

Quem não for regenerado não pode compreender totalmente o significado da Bíblia. Quem não é salvo está cego espiritualmente (2 Co 4.4) e morto (Ef 2.1). Paulo escreveu: “Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente” (1 Co 2.14). Isso significa que quem não é salvo não tem condições de entender o que as Escrituras dizem? Não. Antes, significa que ele não tem a capacidade espiritual de receber e assimilar as verdades espirituais, Como disse Martinho Lutero certa vez, os irregenerados podem entender a gramática de João 3.16, mas eles não agem em decorrência dos atos ali descritos, E nesse sentido que são incapazes de conhecer as coisas do Espírito de Deus. Quem não é salvo não acolhe a verdade das Escrituras porque ela atinge em cheio sua natureza pecaminosa. O verbo grego traduzido por “aceitar”, em 1 Coríntios 2.14, é dechomai, “acolher”.

Uma pessoa que não é salva, em quem o Espírito Santo não habita, pode entender mentalmente o que a Bíblia diz, mas ela rejeita a mensagem e se recusa a assimilá-la e praticá-la. Em contrapartida, lemos que os de Beréia “ … receberam [dechomai] a palavra com toda a avidez…” (At 17.11) e que os tessalonicenses receberam a Palavra “… com alegria do Espírito Santo” (1 Ts 1.6). A passagem de 1 Coríntios 2.14 também afirma que o irregenerado não entende as coisas espirituais. O verbo grego giriõskõ (“compreender”) não significa entender com o intelecto; significa compreender por experiência. Evidentemente, os irregenerados não experimentam a Palavra de Deus, porque não a acolhem. Só os regenerados têm a capacidade de acolher e experimentar as Escrituras mediante o Espírito Santo.[1] [1] Veja também Roy B. ZuCK, The Holy Spirit inyour teaching, ed. rev., Wheaton, Victor Books, 1984, p. 62-3.

E preciso mais do que regeneração. Reverência e interesse por Deus e por sua Palavra também são fundamentais para a interpretação correta das Escrituras. Uma atitude de apatia ou arrogância em relação à Bíblia não colabora para o entendimento correto da verdade de Deus. As Escrituras são chamadas de santas e devem ser tratada como tal (2 Tm 3.15), Outros requisitos espirituais são o espírito de oração e a humildade. Um intérprete precisa reconhecer que, ao longo dos séculos, outros leitores da Bíblia lutaram para descobrir o sentido de muitas das mesmas passagens bíblicas e, por isso, talvez tenham adquirido conhecimentos sobre esses textos das Escrituras. Nenhum intérprete é infalível. Portanto, ele precisa admitir a possibilidade de sua interpretação de determinada passagem não estar certa. . Ao ler as Escrituras, deve haver também a disposição de obedecer-lhes, de colocar em prática o que foi aprendido na Palavra.

Quando uma pessoa verifica como o Senhor atuou na vida das personagens bíblicas que lhe obedeceram ou desobedeceram e quando compreende os preceitos e as instruções bíblicas para a vida de cada um, ela deve dispor-se a seguir tais exemplos e orientações. A não-reverência pela Palavra, a falta de oração, o orgulho ou a relutância em obedecer às verdades bíblicas são empecilhos para o entendimento do que a Bíblia diz. O intérprete também precisa depender do Espírito Santo. Como escreveu Moule, “o Espírito bendito não é apenas o Autor legítimo da Palavra escrita; é também seu Expositor supremo e autêntico”.[2] A participação do Espírito Santo na interpretação bíblica indica várias coisas. Em primeiro lugar, sua participação não significa que as interpretações de alguém serão infalíveis. Inerrância e infalibilidade são características dos manuscritos originais da Bíblia, não de seus intérpretes. As pessoas têm o direito de interpretá-la, mas isso não significa que todos as conclusões da interpretação individual serão precisas.

[2]. H. C. G. MOULE, Vem Creator: thoughts on the person and work of the Holy Spirit, London, Hodder & Stoughton, 1890, p. 63.

Em segundo lugar, a obra do Espírito na interpretação não quer dizer que ele desvende para alguns intérpretes um sentido “oculto”, diferente do significado normal e literal da passagem. Em terceiro lugar, como já dissemos, o cristão que esteja vivendo em pecado é suscetível de interpretar erroneamente a Bíblia, pois seu coração e sua mente não estão em harmonia com o Espírito Santo. Em quarto lugar, o Espírito Santo guia-nos a toda a verdade (Jo 16.13). O verbo guiar significa “ir na frente ou conduzir ao longo do caminho ou estrada”. Jesus prometeu aos discípulos que o Espírito Santo haveria de esclarecer e expandir o que ele lhes havia dado. Depois da ascensão de Cristo, o Espírito Santo desceu no dia de Pentecoste para habitar nos fiéis; os discípulos entenderam, então, o significado das palavras de Jesus com relação a si próprio e à sua morte e ressurreição. Embora o versículo 13 visasse aos 12 especificamente (v. 12), todos os cristãos podem ser assim conduzidos à verdade sobre Cristo.

Entretanto, o crente não é automaticamente guiado pelo Espírito Santo para que compreenda a verdade das Escrituras, pois, como já foi dito, é preciso obediência. Orientação pressupõe obediência ao Guia e desejo de ser guiado. O crente só tem condições de aplicar, isto é, assimilar pessoalmente as Escrituras pela capacitação do Espírito Santo.Em quinto lugar, o papel do Espírito Santo na interpretação da Bíblia significa que ele não costuma conceder vislumbres intuitivos e repentinos sobre o sentido dos textos bíblicos, Muitas passagens podem ser entendidas à primeira vista; já o sentido de outras às vezes só é esclarecido gradualmente, depois de estudo cuidadoso. A participação do Espírito na hermenêutica não pressupõe uma atuação misteriosa, que não se pode explicar nem averiguar. Em sexto lugar, o papel do Espírito na interpretação indica que a Bíblia foi dada para que todos os crentes a entendessem. Sua interpretação não pertence a uma elite minoritária de eruditos.[3] [3]. Desejando saber mais sobre o papel do Espírito Santo na interpretação bíblica, veja The Holy Spirit in yottr teaching, p. 58-66 e 136-46.

Entretanto, essas exigências espirituais não garantem automaticamente que qualquer interpretação da Bíblia estará correta. Estamos falando de pré-requisitos, não de garantias. Além dessas restrições espirituais, existem outras que facilitam a leitura e o estudo da Bíblia. A vontade de estudar é fundamental. Pode-se incluir aí, entre outras coisas, o conhecimento dos contextos bíblicos, da história da Bíblia e de teologia. Conforme Ramm explicou, “As questões de ordem prática não podem ser resolvidas exclusivamente por meios espirituais. Não se pode orar a Deus pedindo informações sobre a autoria de Hebreus e ter por certa uma resposta clara. Não cabe também orar a respeito de outras questões elementares relativas à Bíblia e crer que receberá uma revelação sobre a revelação. [4] O estudante da Bíblia também precisa aproximar-se das Escrituras com equilíbrio e bom senso, procurando ser o mais objetivo possível, sem prevenções nem opiniões preconcebidas.

[4]. Bemard RAMM, Protestam biblical interpretation, 3. ed. rev., Grand Rapids, Baker Book House, 1979, p. 14.

Então, tudo isso quer dizer que a média dos leigos não tem condições de entender a Bíblia? Eles precisam cursar uma escola bíblica ou um seminário para poderem interpretar as Escrituras corretamente? Não, o significado de suas páginas não é restrito a uma minoria. O homem, feito à imagem de Deus, é um ser racional (além de emotivo e volitivo). Ele possui a capacidade intelectual de compreender as Escrituras. Como revelação de Deus escrita nas línguas humanas, a Bíblia é passível de ser entendida. Por outro lado, isso não elimina a necessidade de professores e não quer dizer que uma pessoa munida da Bíblia pode aprender sozinha sem atentar para o que outros creem sobre as Escrituras.[5] Certas pessoas receberam o dom de ensinar (Rm 12.7; 1 Co 12.28; Ef 4.11). Os 3 000 discípulos que receberam a salvação no dia de Pentecoste “perseveravam na doutrina dos apóstolos…” (At 2.42). Pedro e João “entraram no templo e ensinavam” (5.21).

[5]. No que se refere à estranha afirmação “não tendes necessidade de que alguém vos ensine” (1 Jo 2.27), veja The Holy Spirit inyour teaching, p. 55-7.

Eles continuaram “… ensinando o povo” (v. 25) e “todos os dias […] não cessavam de ensinar…” (v. 42). Bamabé e Saulo ensinaram numerosa multidão…” em Antioquia (11.26). Paulo permaneceu em Corinto um ano e meio “… ensinando entre eles a palavra de Deus” (18.11). Em Éfeso, Paulo ensinava “… publicamente e também de casa em casa” (20.20). Ele foi acusado de ensinar a todos em toda a parte (21.28). Até mesmo quando estava em Roma, sob prisão domiciliar, com toda a intrepidez […] ensinava as cousas referentes ao Senhor Jesus Cristo” (28.31). Se cada crente fosse capaz de entender completamente as Escrituras por conta própria, sem a ajuda de ninguém, então por que os apóstolos estavam envolvidos em ensinar os crentes e por que o dom do ensino é dado a certas pessoas na igreja de hoje? Esse ensinamento pode ser transmitido pessoalmente ou mediante instruções escritas, nos comentários. A atitude de manter-se aberto para receber a direção do Espírito por meio de outros pode ajudar o estudioso da Bíblia a evitar alguns dos perigos já mencionados. A questão agora é se as Escrituras são claras.

Fonte: A interpretação Bíblica – Meios de descobrir a verdade da Bíblia.
Roy B. Zuck
Tradução de Cesar de E A. Bueno Vieira
edições vida nova.
pags 24-28


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