Antes da arqueologia, a Bíblia era a testemunha solitária do que então se
conhecia como “história sagrada”. As Escrituras, porém, assemelhavam-se a um
livro exótico, narrando a história de uma civilização alienígena, desvinculado
de pessoas e eventos reais. Sem acesso ao material do passado, cada um concebia
o mundo bíblico à sua maneira. Porque a maioria da população mundial era
analfabeta — situação que se estendeu até os tempos modernos — e cabia à arte
e à arquitetura o papel de instruir o povo a respeito da vida nos tempos bíblicos.
O mundo espiritual era elevado na arquitetura das catedrais, por exemplo,
posicionando o homem comum ainda mais distante da realidade do mundo da
Bíblia. Desde os mosaicos até as pinturas e esculturas em relevo, ilustrava-se a
vida dos santos e pecadores das páginas sagradas, mas somente à luz limitada da
época e dos conhecimentos do artista.
Defrontei-me pela primeira vez com esse dilema durante uma exposição
especial no Museu de Israel intitulada “Rembrandt e a Bíblia”. Graduado em
arte e em teologia, interessei-me por aquela singular apresentação das obras do
mestre holandês. Uma das primeiras cenas que vi estava num esboço, datado de
1637, que representava um homem, obviamente rico, de pé na escada à porta
de sua mansão. Vestia turbante, túnica com cinto, botas de cadarço, casaco de
pele, e tinha um cão obediente aos seus pés. Também faziam parte da cena um
garoto vestido com pesada roupa de viagem e botas e um a mulher,
semelhantemente vestida, que segurava um lenço de seda. Ao fundo, altas construções de pedra e grandes árvores verdes junto das quais uma mulher observava
o homem que aparentemente dizia adeus à mulher chorosa e ao garoto.
() lema da obra era a despedida de Agar e Ismael, e o homem era Abraão.
Porém, conhecendo o mundo da Bíblia, jamais teria concebido a cena tal como
se mostrava diante de mim! As personagens estavam vestidas para um clima
frio, e não para o escaldante deserto do Neguebe. Onde Abraão morava não
havia aquelas árvores e provavelmente nem cachorros — pelo menos não os
domésticos. E os patriarcas moravam em tendas, não em mansões elegantes.
Quase que por ironia poucos passos à frente da sala onde eram exibidas
aquelas concepções erradas do século XVII ficava a exposição permanente da
seção arqueológica do museu, que guardava remanescentes arqueológicos da
época de Abraão. O contraste saltava aos olhos. As relíquias pintavam um quadro
muito diferente do de Rembrandt, mostrando a realidade da vida nômade
dos beduínos e da sociedade que cercava os patriarcas.
Rembrandt não poderia mesmo saber como pintar Abraão e Sara, naturais
da Mesopotâmia, ou a egípcia Hagar num ambiente cananita. Não havia referências
daquela época para suprir a sua arte. A arqueologia mudou essa situação
para sempre, fornecendo tanto ao artista quanto ao espectador uma visão acurada
do ambiente original dos patriarcas. Esculturas de palácios da Mesopotâmia,
cerâmica e artefatos cananitas e painéis pintados das tumbas egípcias, todos
datando do período patriarcal, tornaram vivas as figuras bíblicas. Se os registros
arqueológicos que hoje possuímos estivessem disponíveis a Rembrandt, que
obras não teria pintado!
O mundo da Bíblia, conforme iluminado pela arqueologia, tem facilitado
também a interpretação do texto bíblico em seu contexto histórico, como observa
Gonzalo Báez-Camargo: “Não vemos mais dois mundos diferentes, um
mundo da ‘história sagrada e outro da ‘história profana. Toda história é uma
história, e é a história de Deus, pois Deus é o Deus de toda a história”.
Os achados materiais dessa história governada por Deus magnificam o mundo
da Bíblia com detalhes e um realismo jamais imaginado. O professor Amihai
Mazar explica:
Podemos calcular até a população de lugares como Jerusalém, ou toda a área de
Judá, ou do reino de Israel. Podemos imaginar quantas pessoas viveram lá, em
que tipo de comunidades viviam, que tipo de plantas cultivavam, que tipo de
vasilhas utilizavam na vida diária, que tipo de inimigos tinham e que tipo de
armas eles usavam contra esses inimigos — tudo o que se relaciona ao aspecto
material da vida no período do Antigo Testamento pode ser descrito por achados
arqueológicos desse período em particular.
Para demonstrar como o mundo da Bíblia trouxe clareza ao texto bíblico por
meio das descobertas arqueológicas, consideremos as palavras de Jesus registradas
em Mateus 8.22 e Lucas 9.60, consideradas ásperas: “ […] deixa aos mortos
sepultar os seus mortos”. Esses evangelhos colocam as palavras num contexto
em que certos discípulos explicavam o porque de não poderem deixar de
imediato as suas respectivas situações para seguir a Jesus. Nesse exemplo
específico, um discípulo pediu permissão para ir primeiro enterrar o seu falecido
pai. Conforme entendido pelos leitores modernos, a aparente negativa de Jesus
mostra-se tanto irracional quanto desnecessariamente severa. Alguns
comentaristas tentam atenuar a declaração, interpretando-a como “deixe os
espiritualmente mortos enterrarem os fisicamente mortos”, mas isso iria
contradizer o quinto mandamento da lei mosaica, que diz: “Honra a teu pai e
a tua mãe…” e a responsabilidade judaica de providenciar um sepultamento
apropriado conforme ordenado em Deuteronômio 21.22,23.
Todavia, quando interpretados à luz da informação arqueológica concernente
às práticas de sepultamento do primeiro século judaico, o pedido do discípulo
e a resposta de Jesus podem ser vistos sob uma ótica diferente. O enterro judaico
no tempo de Jesus consistia na verdade de dois sepultamentos e [o segundo]
acontecia pelo menos um ano depois. O primeiro (conhecido como ser “reunido
aos seus pais”) era dentro da cova da família, seguido por um período de pranto.
O segundo era dentro de uma caixa de ossos (ossuário), geralmente com os
resquícios de outros membros da família, quando já a carne estava decomposta.
O que parece estar em foco no registro do evangelho é o segundo sepultamento
(conhecido como ossilegium). A réplica de Jesus ao discípulo que desejava uma
licença de 11 meses antes de iniciar o serviço não se referia apenas à prolongada
ausência, mas especialmente ao aspecto não-bíblico do segundo sepultamento.
O sepultamento imediato (“reunir-se aos seus pais”) é retratado na Bíblia (ver
Gn49.29;Jz2.10; 16.31; 1 Rs 11.21,43), mas nos tempos do Novo Testamento
esse conceito havia adquirido um outro significado teológico. De acordo com
fontes rabínicas, o ato da decomposição tinha um efeito purificador, fazendo
expiação pelos pecados do falecido. A consumação desse processo espiritual era
o ritual do segundo sepultamento. Uma vez que Jesus seguia o ensino bíblico
de que somente Deus faz expiação (sobre a base da fé na redenção sacrifical
[…]), sua declaração corrigia essa prática imprópria. Poderíamos então interpretar
as palavras em Lucas 9.60 […] como: “Olhe, você já honrou o seu pai dando lhe
um sepultamento apropriado na tumba da família. Agora, ao invés de esperar
que a carne se decomponha, o que não pode expiar o pecado, vá pregar o
evangelho do Reino de Deus […] o único meio de expiação. Deixe os ossos dos
ancestrais de seu falecido pai reunirem-se aos dele no ossuário! Quanto a você,
siga-me!
Fonte: Livro: Arqueologia Bíblia- Autor: Randall Price, Editora: CPAD, pags- 32-34